53ª SESSÃO SOLENE DA 4ª SESSÃO LEGISLATIVA ORDINÁRIA DA IX LEGISLATURA.

 


Em 20 de novembro de 1986.

Presidida pela Sra. Gladis Mantelli - 1ª Vice-Presidente.

Secretariada pelo Sr. Ennio Terra - Secretário “ad hoc”.

Às 15h05min, a Sra. Gladis Mantelli assume a Presidência e solicita ao Sr. Ennio Terra que proceda à verificação de “quorum”.

 

 


A SRA. PRESIDENTE: Havendo número legal, declaro abertos os trabalhos da presente Sessão Solene destinada a homenagear a Semana do Negro.

Convido a fazer parte da Mesa os Srs.: Dr. Alceu Collares, Prefeito Municipal de Porto Alegre; Ver. Valdir Fraga, Secretário do Governo Municipal; Prof. Jorge Furtado, Diretor da FESC; Sra. Maria Helena Mathias da Rosa, representante da Sociedade Embaixadores do Ritmo e o Sr. Osvaldo Abenserrage, representante da Academia de Samba Praiana.

Falará em nome das Bancadas do PDT, PMDB, PFL e PSB o proponente da Sessão, Ver. Ennio Terra, que está com a palavra.

 

O SR. ENNIO TERRA: Sra. Presidente, Srs. Vereadores, o Brasil vive, atualmente, uma fase de grandes transformações. Em breve teremos uma nova Constituição. Estamos vivendo sobre a égide de uma “Nova República”. Houve mudança na moeda e na economia do País. É hora, portanto, de revisarmos conceitos antigos, criados a bel-prazer dos grupos majoritários e governantes, que os forjaram de acordo com a época.

Vejamos estes conceitos:

“negro” - diz-se de indivíduo da raça negra, chamado também de preto, que para os poetas é a soma de todas as cores, portanto, a mais bela, pois todas se unem para formá-la.

“Escravidão” - homem sobre o domínio de outro homem e a utilização de sua força para fins econômicos visando à riqueza e ao bem-estar de terceiros.

Eis aí os novos conceitos a serem firmados. Só os negros foram escravos? As vilas populares são formadas somente por negros? E só essa raça é explorada, vive marginalizada, subnutrida e com subemprego?

É de lembrar, nesta data, que, na enganadora data de 13 de maio de 1888, houve somente uma troca de donos. Os negros saíram das senzalas e foram para as periferias viver miseravelmente, desprezados por parte da população. Mas porque isto para uma raça que veio para o Brasil à força? Eles não abandonaram à África em busca de nova vida, de novas esperanças, como se suas terras já se houvessem esgotado e nada mais houvesse a conquistar. Simplesmente foram aprisionados e aqui vendidos como animais. Alguém perguntou o que eles haviam deixado em suas terras?

Aqui, em troca da liberdade que lá gozavam, foram viver como propriedade total e ilimitada do dono, privados de quaisquer direitos e submetidos a uma total dependência. Não havia limite para a duração da jornada de trabalho. Esta ia da aurora à noite. Não eram respeitados domingos ou feriados, e tudo era executado debaixo do chicote. Mas perguntamos: hoje o trabalhador, o operário livrou-se do chicote? Ou a agressão moral que vive ao trabalhar de sol a sol para receber um salário de fome não é uma forma de ser chicoteado? Os barracos, as vilas, as malocas nada mais são do que senzalas onde os atuais escravos vivem iludidos de que são libertos. Por tudo isso, podemos afirmar que o perfil histórico do Brasil foi traçado pela escravatura que, até hoje, apesar de reunir várias raças no subdesenvolvimento, produz o modelo social e econômico do nosso País. O opressor ainda tem em suas mãos todos os meios disponíveis de dominação, até a seleção de fatos a serem registrados para a posteridade, pois manipular ou discriminar as informações é uma das maneiras de escravizar um povo. Sem conhecer sua história, ele perde sua própria identidade, e isto foi negado aos descendentes dos negros, que desconhecem sua história

Contaram que os negros vieram da África, porque os índios não serviam para o trabalho. Sempre apresentaram o negro como preguiçoso, motivo pelo qual era usado o chicote. Hoje, a mão de obra não é especializada, não há divulgação da cultura herdada, não há escolaridade nos que vivem nas vilas periféricas... Mas que tipo de ensinamento é posto ao alcance deles?

Mas a história vista pelos negros é diferente.

Vocês sabiam que a venda, o tráfico de negros foi uma das mais lucrativas atividades comerciais do séc. XVII, como o tráfico de drogas é atualmente, e que somente agora está sendo atacado, depois que os poderosos encheram seus cofres? Diziam que os negros eram pacíficos, mas não falaram nas várias formas de resistência pelos negros desenvolvidas: uma delas era a fuga individual, onde cada um se arrumava como podia; outra, a coletiva, quando os escravos se revoltavam contra os engenhos e seus donos, e, como escolha final, buscavam alcançar a liberdade através do suicídio. Após a fuga, apresentava-se o primeiro problema em uma terra desconhecida. O que fazer da liberdade conquistada? Ficar no engenho e serem, novamente aprisionados? A única saída seria enfrentar a mata. Nela poderiam ser descobertos pelos capitães-do-mato, que possuíam armamento, mas ao menos teriam alguns dias de liberdade.

Acontece que toda história tem um fator surpresa, e um grupo de refugiados do sul da Capitania de Pernambuco tomou a decisão desesperada: iriam para uma região desconhecida como Palmares. Não se conhecia alguém que já houvesse explorado aquela região considerada tenebrosa. A terra era uma incógnita, mas eles não tinham muita escolha; puseram-se em marcha, somente com a roupa do corpo, pois não possuíam mesmo outras, algumas facas, instrumentos de trabalho, fé em seus deuses e muita esperança.

O grupo andou muitos dias até chegar a uma região onde a serra permitia descortinar uma larga faixa de terreno em todas as direções. Na Serra da Barriga, no atual Estado do Alagoas, iniciou-se, então, a futura República de Palmares, um estado negro dentro do Brasil colonial. Nenhum documento oficial na história do País registra este fato. Mas pergunto? Quantos fatos acontecidos nas últimas décadas também deixaram de ter registro?

Na sua caminhada, dedicaram-se à caça, à pesca e à coleta de sementes. Eles, na África, já utilizavam instrumentos de trabalho de ferro. Criaram, então, instrumentos de madeira para trabalhar a terra. Na África, haviam praticado uma policultura com técnicas complexas. Aqui, no Brasil, foram rebaixados a uma monocultura, fato que até hoje ocorre, obrigando um país que “em se plantando tudo dá” a fazer largas importações. Pelo apresentado, o negro somente regrediu, mas haviam criado uma economia de auto-subsistência nos quilombos. As famílias recebiam terra com a condição de que a cultivassem e entregassem à comunidade uma parte. Na atualidade, várias famílias lutam para ter seu pedacinho de terra, mas continuam esperando a “reforma agrária”. No quilombo, a jornada de trabalho era de mais ou menos seis horas e o excedente da produção se destinava às crianças órfãs, aos velhos, doentes e a acudir as emergências como secas e pragas. Atualmente, nas cidades, as crianças órfãs vagam pelas ruas e se sustentam de esmolas ou pequenos furtos. Os velhos dormem pelas ruas ou são recolhidos aos asilos; quanto aos doentes, formam um quadro à parte do qual me desgosta falar, tal à situação.

O chefe era escolhido por um “conselho” que, por sua vez, era escolhido por todos os habitantes do quilombo; havia também órgãos técnico-administrativos, incumbidos de organizar e coordenar a vida comunitária. Um destes chefes destacou-se de forma a criar um novo sentimento, uma nova forma de pensar... Seu nome: Zumbi, nascido num dos inúmeros quilombos que formavam Palmares.

Como nesta época não só negros moravam nos quilombos, mas também índios e brancos, dando origem, talvez, a miscigenação que forma o povo brasileiro, aprendeu a ler, tornando-se o líder mais capaz e aguerrido da república negra.

A cultura para o homem é igual à água para o peixe. Zumbi teve consciência disto e despertou em seus irmãos a coragem de lutar pelo que acreditavam. Por isso Palmares cresceu. O que fora inicialmente um pequeno refúgio de escravos tornou-se uma potência econômica, social e politicamente organizada, trazendo intranqüilidade à sociedade escravagista colonial, uma vez que o trabalho escravo sustentava a maioria dos Estados coloniais, como acontecia aqui, no Rio Grande do Sul, onde a economia gaúcha tinha seu sustento neste tipo de atividade empregada nas charqueadas. Então, a forma de governo dos quilombos não servia aos grandes senhores, que trataram logo de destruí-los.

Por tudo isto, que mostra o trabalho, a garra, a vontade de viver, é que os movimentos negros reivindicam o dia 20 de novembro como a data mais significativa da luta do negro, pois nesta data Zumbi pelejou valorosa e desesperadamente, não querendo render-se, preferindo alcançar a liberdade através da morte.

A Coroa deu como finda a República de Palmares, e, como sempre acontece os grandes proprietários da região receberam as terras.

Vemos as lutas que os negros travaram e ainda travam, hoje em dia, em vários países do mundo, para conquistar seu lugar na sociedade. No Brasil, a memória de Zumbi continua sendo um símbolo de luta, e aquele Palmares que ontem a ambição e a irracionalidade derrubaram ressurge com muito mais força, força adquirida com a coragem de Zumbi, Martin Luther King, Mandela e sua esposa e tantos outros, pois cada um que nasce torna-se uma esperança a mais de que um dia a situação irá mudar.

Com eles aprendemos que só é escravo aquele que não lutou até o fim, aquele que não quis arriscar a vida, que não adotou o princípio “vencer ou morrer”, aceitou a vida escolhida por outro, e por esta razão vive como escravo.

Sepé Tiarajú dizia - “Esta terra tem dono”, e em nome desta terra digo: aqui estou, Zumbi. Vim para me desculpar, para te dizer “chegamos tarde, mas chegamos”. Releva o atraso, pois viemos dispostos a lutar por uma vida melhor.

Te prometemos isso, Zumbi, porque este foi o teu sonho. Muito obrigado. (Palmas.)

 

(Não revisto pelo orador.)

 

A SRA. PRESIDENTE: Com a palavra, o Ver. Hermes Dutra, que falará pela Bancada do PDS.

 

O SR. HERMES DUTRA: Sra. Presidente, Srs. Vereadores, meus Senhores e minhas Senhoras, uma sessão com o propósito desta, que exige que efetivamente se faça uso da palavra não só para o efeito formal de registro da presença de uma Bancada partidária com assento nesta Casa, mas, sobretudo, também para mostrar, que, numa semana que se acordou chamar de “Semana do Negro”, há, no intervalo que a percorre, uma data dedicada a Zumbi, na verdade deve servir como um momento de reflexão sobre a questão que é levantada, que é discutida e que é mais sentida nesta oportunidade. Eu me pergunto, às vezes, por que não temos a semana do italiano, ou a semana do japonês? Mas temos a Semana do Índio e a Semana do Negro. O Brasil é tido e havido como um país em que há uma democracia racial - que não existe. O que há no nosso País é uma miscigenação racial, porque democracia racial pressupõe um entendimento bem mais amplo. Estas duas minorias, se têm a data e a semana, isto se deve, talvez, a um problema de consciência da própria sociedade, porque a maior discriminação que pode haver e a maior discriminação que se vê no País, hoje, é a da desigualdade e nesta o negro teve parcela maior, parcela maior que não tem na representação política, parcela maior que não tem na representação econômica, e os exemplos estão aí. O Prefeito Alceu Collares nesta Mesa é exceção; a regra é outra. Na Bahia, que é um estado essencialmente de população negra, até hoje não vimos um governador negro, ou sequer a Assembléia Legislativa baiana é composta de negros. A homenagem que se quer fazer ao negro eu a faço, até porque nas minhas veias também correm sangue do negro, mas acho que, antes da homenagem, vem a reflexão, sobretudo como um oferecimento de apoio a uma luta que, se Zumbi, como brilhantemente narrou o Ver. Ennio Terra, autor da Proposição, se Zumbi lutou e morreu em benefício de um ideal, cabe a nós mostrar que esse ideal não é utópico, e se não mostrarmos e não nos esforçamos para isso terá sido mais uma das tantas utopias que a História registra. Talvez fosse demais pensar em uma sociedade imaginada por Zumbi dos Palmares, mas se enquanto se sonha com a sociedade em termos de igualdade, como ele a idealizou, na ordem prática das coisas deve cada um dar a sua contribuição para que esta herança cultural que vem de berço, dos que vieram antes de nós, consiga ser superada por aqueles que vieram depois de nós e que nós consigamos transmitir aos nossos filhos para que eles possam transmitir aos nossos netos menos discriminação da que nós recebemos dos nossos pais e nossos avós. Isso há que se reconhecer publicamente, porque há muito cinismo quando se trata da questão do negro, a começar pela expressão “democracia racial”, quando sabemos que não existe. É um cinismo e uma hipocrisia e é uma verdade. Há o sentimento racista, que não é culpa desta geração, é uma herança cultural e talvez custe mais para terminar pela própria hipocrisia que se tem de não a reconhecer existente e tentar “tapar o sol com a peneira”. E o negro só consegue diminuir o preconceito quando tem uma boa estrutura social - aqui o social deve ser entendido como econômico - aí ele passa a ser aquilo que se denomina “negro de alma branca”. Eu digo isso - e talvez até doa nos ouvidos de vocês, como dói no meu também - porque esta é a realidade. Acho que é encarando a realidade, vendo como ela realmente é, que nós damos a nossa contribuição para que amanhã os nossos filhos e netos tenham menos sentimentos de discriminação racial. Esta, eu acho, nobre Ver. Ennio Terra, que é a melhor homenagem que se pode prestar na Semana do Negro, que a maior mostra de discriminação é a própria semana em si, mas esta semana mostra a ferida, a chaga da nossa sociedade, que tenta “tapar-se com a peneira”, porque não se esconde com a falsa idéia de uma democracia racial. Acho que o Brasil é um país que amalgama todas as raças e acredito que eu não sou daqueles que acha que deva haver a raça negra e ela, assumindo a cultura, deva assumir como um segmento da sociedade brasileira. Penso diferente. Penso que no futuro, um futuro distante certamente, mas num futuro, haverá de surgir a verdadeira raça brasileira, assumindo todas as virtudes e defeitos de todas as raças que aqui vieram para forjar a grandeza deste País. Umas tiveram mais oportunidades do que outras. Houve os que contribuíram com a inteligência porque assim puderam. Houve os que contribuíram com os braços porque só lhes foi permitido isso. Nestes, está incluída a raça negra que, como outras etnias, tem valor fundamental na formação do homem brasileiro. `

E, ao concluir, não sei se me fiz entender, há coisas que as pessoas não gostam de ouvir, mas devemos ser sinceros nestas oportunidades. Não se deve vir aqui para fazer bonito. Deve-se vir nesta hora em que se levanta o problema de uma raça que não é sub-raça, ao contrário, é uma raça forte. A demonstração maior que deu foi que conseguiu sobreviver em condições imensamente mais difíceis do que sobreviveu o branco e que, infelizmente, não conseguiu sobreviver o índio, porque este está sendo dizimado. E o papel que desempenha e que tem a desempenhar o negro na sociedade brasileira acho que não é o papel de futuro, papel de assumir os valores da nação brasileira; acho que o negro tem que assumir o papel que tem direito de representar na peça teatral que é a vida de cada um de nós e, assumindo esse papel, tenho absoluta certeza de que vamos conseguir, embora volte a fazer um figura retórica, a verdadeira democracia racial, que é tão decantada, mas que sabemos nós, e temos que reconhecer publicamente, só existe nos belos discursos e em alguns livros que são escritos não por aqueles que efetivamente viveram a história. Esta é a colaboração que estendo nesta Semana com a promessa de que o que foi dito aqui foi feito com sinceridade e é a forma de agir na minha vida, porque acho que só se pode falar aquilo que se vivência e aquilo que se faz. Muito obrigado. (Palmas.)

 

(Não revisto pelo orador.)

 

A SRA. PRESIDENTE: Concedemos a palavra ao Ver. Lauro Hagemann, que fala em nome das Bancadas do PCB e PT.

 

O SR. LAURO HAGEMANN: Sra. Presidente, Srs. Vereadores, Senhoras e Senhores, tenho a honra de falar em nome das Bancadas do PCB e do PT, nesta Sessão especial em tão boa hora proposta pelo Vereador, meu dileto companheiro, Ennio Terra, dedicada a homenagear a Semana do Negro e, especialmente, a data de 20 de novembro, data da morte de Zumbi, uma das maiores expressões da cultura negra brasileira. O Ver. Hermes Dutra já se referiu a esta Sessão como uma hora de reflexão, e é o que nos propomos a fazer brevemente para não maçar a assistência.

Nas nossas andanças pré-eleitorais, pré-constituintes, toda a vez que se abordava o problema da educação, da situação econômica por que passa o Brasil e, especialmente, quando se fala sobre cultura, se levantava a necessidade de uma ampla revisão da História deste País, porque, como se costuma dizer, a História até agora só foi escrita pelos vencedores. Os vencidos, que são a imensa massa populacional brasileira e nesta o que erroneamente se designa por minorias étnicas, entre as quais o negro, nunca foram aquinhoados devidamente. Esta revisão, necessariamente, terá que ser feita pelos novos historiadores, por aqueles que entendem que o papel desta imensa minoria tem que ser revisto. Não se pode mais escrever a História oficial deste País como ela é apresentada hoje à nossa juventude, com as cores com que ela até hoje foi pintada. É preciso pintá-la com cores mais reais.

Tem-se dito, também, que a educação neste País é elitista e de fato é. É uma educação armada e propagada para se manter a elite dirigente, fazendo com que ela continue estabelecendo os privilégios daqueles que dominam este País e que são uma minoria.

Então, a começar-se por aí, por esta revisão histórica do papel, principalmente, do negro na sociedade brasileira, não só nos seus aspectos culturais, mas, sobretudo, e principalmente nos seus aspectos econômicos, é que terá que haver um trabalho muito intenso, e para isso a própria comunidade negra e seus descendentes terão que contribuir. E como contribuir? Nós não podemos ficar somente a nos relembrar. Relevem-se, pois não me dirijo a ninguém. Essas palavras apenas são uma reflexão. Não podemos ficar numa posição romântica de detectar o problema, chorarmos sobre e ele e dizer que tudo aconteceu porque uma minoria assim o quis, sem propormos alguma coisa efetiva para que esta realidade se transforme ou comece a se transformar. Temos consciência de que isto é um processo longo, penoso, doloroso, mas alguém tem que começar a fazer alguma coisa. Não temos nenhuma bola de cristal para dizer em qual dia ou mês as coisas vão se modificar. Isto só o processo determinará. Mas é preciso que a sociedade brasileira comece a agir no sentido de transformações da realidade. Invoco a minha condição de comunista para dizer que num regime socialista o negro terá assegurada a sua condição, pois nele a igualdade entre todos os seres humanos, independente de sua cor, é que se dá a verdadeira democracia. Não podemos falar em democracia adjetivada. Ou ela é ou não é democracia. Não há democracia racial, não podemos falar nisto, democracia religiosa, econômica, etc. Ou é democracia inteira ou não. Onde não houver igualdade entre todos os cidadãos, não há democracia. É por essa democracia que nós lutamos, para que ela seja integral, política, econômica, social, até racial. Mas democracia por inteiro. Por isso é que aqui mesmo, nesta Casa, modestamente, começa a se praticarem algumas ações que vão nesta direção. A chamada Lei Afonso Arinos, por exemplo, é uma expressão romântica da luta que tenta resguardar o negro na sociedade brasileira, mas ela não tem efeitos práticos. Esta Casa está por apreciar brevemente um projeto em que se estabelecem sanções práticas contra aqueles que praticam a discriminação racial. É uma modesta contribuição. Poderá transformar-se em lei municipal.

Nós temos também que, neste dia e nesta hora, lembrarmos as figuras negras de todo o mundo que lutam hoje por uma transformação. Não podemos esquecer a figura de Nelson Mandela, condenado à prisão perpétua, porque pretendeu e continua pretendendo transformar o seu país numa verdadeira democracia: uma democracia socialista. Não podemos esquecer outras figuras, algumas trucidadas pela reação mundial, porque pretenderam-se levantar contra este predomínio. Nós temos ainda outras figuras vivas, figuras religiosas, como o bispo Desmond Tutu, que luta tenazmente por manter o continente negro livre, ou pelo menos, libertá-lo da tutela imperialista, monopolista. Temos o exemplo significante de Angola e Moçambique, sem falar em outras novas repúblicas africanas que já estão se modernizando e pendendo para um regime socialista a fim de, justamente, através deste novo modelo, eliminar essas diferenças sociais. Não estamos propondo também que haja distinção entre negros e brancos, ou entre amarelos e vermelhos, seja lá que cor for. Temos necessidade é de integrar essas raças todas, porque todos são cidadãos do mundo, todos fazemos parte da mesma sociedade. Não há que se ter esta distinção. Lamentavelmente, entre nós o fator econômico tem produzido para o negro esta situação de desigualdade. Mas é através de uma educação, de uma verdadeira democracia que deverá estabelecer-se neste País, que nós vamos começar a redimir estes erros e estes equívocos, permitindo que todos os cidadãos, independentemente de sua cor ou de sua convicção, tenha acesso à escola gratuita universal para que através, também, da educação as possa começar a reformar este processo.

Eu devo parar por aqui, porque nós ficaríamos muito tempo debatendo estes assuntos para os quais seriam necessários muitos tratados a fim de serem mais aprofundados. Mas é preciso que não se desanime, que todos participem da luta, que se organizem através das suas entidades, seja de que natureza forem, inclusive por entidades recreativas, para que a consciência de todos os cidadãos de todas as cores comece a despertar para o que deverá ser, neste País, o mais breve possível, uma verdadeira democracia. Muito obrigado.

 

(Não revisto pelo orador.)

 

A SRA. PRESIDENTE: Concedemos a palavra ao Prefeito de Porto Alegre, Dr. Alceu Collares.

 

O SR. ALCEU COLLARES: Sra. Presidente, Srs. Vereadores, nós estamos vivenciando, hoje, um acontecimento histórico de grande importância para o Brasil e principalmente para nós, os negros, por fatores diversos. Antes de nós termos criado o “20 de novembro” como data de consagração à luta de um herói negro que resistiu aos grilhões da escravidão, todos os negros do Brasil eram levados pela cultura branca a comemorar o “13 de maio”, como se ele tivesse sido um acontecimento libertador da raça negra do Brasil. E nós os que estamos tomando consciência, ou que estamos adquirindo a consciência negra, e nem todos a temos, precisamos fazer este processo de autocrítica, porque muitos de nós, negros, ainda não adquirimos a consciência da nossa condição de negro. A cultura na qual fomos criados repelia a situação do negro de tal forma que as próprias crianças, às vezes, queriam imitar as crianças brancas, pois todo um conjunto de valores culturais são cultivados consciente ou inconsciente para deformar a consciência do negro, para esconder o que aconteceu conosco, para negar historicamente o crime coletivo que o Brasil cometeu com a raça negra: o grande, o hediondo, o terrível crime que foi praticado contra o negro brasileiro. Então, nós éramos levados a comemorar o “13 de maio”, dando os aplausos à Rainha, que teria assinado a libertação do negro. Constata-se, hoje um movimento de rebelião do próprio negro não aceitando aquilo que, oficialmente, quiseram e querem ainda nos impor. Fomos descobrir esta data de 20 de novembro - data em que nós levantamos e exaltamos a consciência de um negro, pela primeira vez, iniciou um processo de rebelião, de resistência e de não-aceitação. Mas teria sido o Zumbi o primeiro negro a se rebelar contra a escravidão? Não, todos os negros! Nenhum ao longo da história da escravidão, desde os navios, se conformou com aquele trágico, terrível arrancar de sua terra para vir como animal, como mercadoria em porões imundos para que através do seu braço pudesse, no campo econômico, realizar a riqueza das minorias e das elites não só no Brasil, na América toda, por toda parte, na Europa também. Milhões e milhões de negros foram arrancados do seio da terra onde nasceram para serem escravos em outros lugares do mundo. Nenhum, em nenhuma parte, sofreu tanto como no Brasil. Aqui, vivemos mais de 300 anos sob o jugo da escravidão. E, pior do que isso, até hoje não reconhecem as elites brasileiras, o poder político nacional, a burguesia nacional, a minoria brasileira não reconhece o papel desempenhado pelo negro. E, mais do que isso, toda a vez que nós falamos esta linguagem nos chamam de racistas, dizem que nós queremos nos apartar, que nós queremos viver o racismo às avessas, quando todas as raças que compõem esse universo de etnias no Brasil cultivam os seus valores, buscam manter as suas culturas, a sua poesia, a sua literatura, os seus hábitos, as suas tradições, os seus valores. Estão aí os italianos, os alemães, os japoneses, os chineses, e para ninguém se aponta como se isso fosse racismo. Mas, quando nós, os negros, queremos levantar a nossa cabeça, para primeiro buscas na consciência, no fundo da nossa própria alma - e isso é que está faltando muito para nós - nós ainda não conseguimos um estágio abrangente, que todo o negro pudesse ter esse entendimento. Muitos de nós negamos esta condição, mas não é culpa nossa; nós fomos condicionados, psicologicamente, massivamente a nos comportarmos assim. É a cultura, dentro da qual nós fomos jogados, contra a nossa vontade, contra a nossa aspiração, contra o nosso desejo. E nós vamos sendo esmagados, triturados, massacrados numa sociedade que pratica um racismo hipócrita e cínico, muito mais hipócrita e cínico do que acontece nos outros países. Eu não diria que o problema racial americano é melhor do que o nosso. Não é, é diferente. Mas lá, pelo menos, o branco enfrenta o negro e o negro enfrenta o branco em igualdade quase de condições; porque está claro que não gostam de negro, e está claro, também, que o negro não gosta do branco, e luta para se defender, e ocupa espaços e se agarra, com as suas mãos, no muro da própria existência, sangrando a sua alma, mas ele procura sobreviver. E aqui não. Essa coisa que chamam democracia racial, vai amolecendo a gente por dentro, vai fazendo a gente esmorecer, vai deixando a gente como se pudesse ter as mesmas oportunidades, os mesmos espaços, e isto não é verdadeiro. Milhões e milhões de irmãos nossos estão por aí pelos morros, pelas margens, pelas periferias dos grandes centros, e até no campo, sofrendo, violenta e silenciosamente, um racismo terrível, de todos o mais cruel. Mas será que vão nos dar alguma coisa? Não. Ninguém dá nada para ninguém. Nós, os negros, é que temos condições de, adquirindo a nossa consciência, ocupar os nossos espaços. Fora disso não tem salvação. Ninguém dá nada de graça para ninguém. E é por isto que este movimento tem grande valia. Aqui estão homens e mulheres das escolas de samba, do futebol, das artes, da cultura, da poesia, da literatura, operários, trabalhadores, trabalhadoras e a todos estes lugares nós temos que levar a nossa palavra. Vamo-nos divertir, vamos fazer o nosso carnaval? Vamos. Está na nossa alma, são valores nossos. Vamos nas religiões afro-brasileiras, na Umbanda, na Quimbanda, no Candomblé? Vamos. Não há razão nenhuma em ter constrangimento em dizer que somos negros. É sim uma razão para nós, que já adquirimos um grau de consciência melhor, não perdemos uma oportunidade para dizer aquilo que nos vai na alma, para não nos deixarmos envolver pelo canto das sereias, quando dizem que não há racismo no Brasil, que aqui há uma democracia racial. Não! Isto é coisa da elite, isto é coisa da cultura branca, europeizada, e é natural que seja cultivada pelos brancos, até porque é a cultura deles. Mas este tipo de comportamento é que nos leva a uma dificuldade maior, porque não sabemos contra quem lutar nem de quem nos defender. Há um camaleão escondido na estrutura da sociedade brasileira. Ele se apresenta com várias cores, quando diz: “que negrinho de alma branca, este negrinho é bom, que criolinho simpático, que negrinha bonitinha”! Isto tudo são formas que o branco traz e às vezes nem é culpa dele. Eu me recordo que uma vez, na Câmara de Vereadores, quando eu era Vereador, estavam dando um título a um operário que fora líder sindical, e o autor do Projeto disse: “Olhem, este era um negro de alma branca!” Eu pedi um aparte e perguntei: “Mas vem cá, companheiro, tu já viste a alma das pessoas?” As pessoas têm alma colorida - branca, preta, rosa? Não é culpa dele; ele vem cultivando aquilo anos e anos. Viu os avós, bisavós, pais dizerem aquilo; está incutido no tipo de cultura existente hoje em nosso País. Quem sente o problema do negro? Só o negro. Só nós que somos vítimas do racismo, só nós sabemos. Não estou querendo levantar problemas contra os brancos; estou falando da cultura branca. Podemos dizer que no Brasil há um tipo de racismo que é cultivado por uma minoria, do ponto de vista psicológico, muito mais violenta do que outra, mas temos também de reconhecer que há uma maioria de brancos que inconscientemente ou conscientemente não cultiva racismo; convive perfeitamente com os negros sem observar qualquer tipo de diferença. Isso, enquanto não há competição, enquanto não há concorrência. Na hora em que a ascensão do negro chega ao mercado de trabalho disputando os mesmos lugares, os comentários são: “olha o tipo do negro! Negro metido!” As coisas ficam nesse tipo de conversa.

A hora é boa de refletirmos, de conversarmos nesta grande escola pública, pensar em voz alta esse tipo de colocação. Nós, como também as outras chamadas pseudominorias, como bem disse o Ver. Lauro Hagemann, pois nós negros e os pobres brancos e negros temos o mesmo destino, qual seja o de sermos objeto da exposição de um modelo econômico capitalista. Aí já é um problema não de raça, mas de classe.

A distinção que deve ser feita é essa: além dos problemas de classe, do negro que é pobre e vive no morro e é operário ou camponês, temos o nosso problema específico, a nossa luta, a nossa caminhada, e esta só nós temos condições de fazê-la, de realizá-la e de construí-la. A outra é com o nosso irmão branco; o pobre, o espoliado, o miserável, o operário, o camponês. E somos maioria, juntando os dois.

Por isso esta revolução está na alma de cada um de nós, os espoliados, principalmente os do Terceiro Mundo e, mais cedo ou mais tarde, ela se transformará na mais fascinante realidade que a humanidade vai ver, não tenho a menor dúvida. O despertar da consciência dos povos submetidos à espoliação é algo de fantástico. Ontem, era um Patrício Lumumba; ontem, morreu Samora Machel; hoje talvez morra outra, amanhã morrerão outros... Mas a sombra de cada um deverá surgir sempre na consciência de cada outro, há de surgir sempre na consciência do negro e na consciência do espoliado, pelos quatro cantos do mundo, até que as maiorias tomem consciência de que, sendo maiorias, elas é que devem governar o mundo e não as minorias. Está longe! Mas o que é o tempo na vida de uma nação ou na vida do mundo? Não é nada. O tempo não existe na vida da humanidade. Se cada um de nós fizer a parte que nos cabe fazer, se cada um de nós plantar uma semente na terra fértil para a luta dos oprimidos, nós já estaremos cumprindo a nossa missão. E acho que a nossa missão, de nós que nos reunimos aqui, nesta tarde, para esta homenagem ao Zumbi, principalmente os negros, é de conversar sobre esta problemática, sempre, onde nós no encontrarmos, sem ódios, sem desejos de vindita, sem malquerenças, mas com a consciência muito clara, com muita lucidez sobre a problemática do negro e, principalmente, do pobre espoliado do Terceiro Mundo. E, desde há muito, com as forças que a gente tem, buscar estas afirmações para a nossa gente. Acho que muitos de nós negros também erramos, de quando em quando. Às vezes, os nossos teóricos erram até no tipo de linguagem; às vezes estamos discutindo muito nos gabinetes e fazemos mais ou menos, sem maldade nenhuma, como a esquerda branca, que nos gabinetes resolvem os problemas do mundo inteiro, os problemas sociológicos, com a maior facilidade. Nós, às vezes, seguimos isso, porque é o tipo de cultura. Mas eu, todas as vezes que tenho tido oportunidade, tenho conversado. Já conversei com vários desses líderes que andam por aí, como o Abdias, como o Joel e outros, que acham que nós que tivemos oportunidade de passar por determinadas circunstâncias, de ter obtido uma ascensão social razoável, nós talvez tenhamos que rever o nosso discurso, para que os nossos irmãos nos entendam; nós talvez tenhamos que rever o nosso discurso para que o nosso irmão do morro, da escola de samba, da religião, onde quer que ele esteja, sinta em nós o grau de sinceridade que está dentro do nosso coração e a clareza da nossa homenagem conscientizadora e transformadora.

Gostaria de dizer aos Senhores que tive enorme prazer em participar desta reunião, e que a nossa luta - a luta do negro como luta dos oprimidos - é longa, difícil e dura, mas nós vamos vencê-la se tivermos consciência na nossa caminhada. Muito obrigado. (Palmas.)

 

(Não revisto pelo orador.)

 

A SRA. PRESIDENTE: Ao ensejo do encerramento desta Sessão Solene, compete à Presidência dirigir algumas palavras ao grupo que hoje recebe homenagem desta Casa.

A Casa do Povo tem sempre se preocupado em tentar interpretar os desejos da população de Porto Alegre. Nem sempre ela é feliz, nem sempre ela é capaz de fazê-lo, porém, em boa hora o nosso Ver. Ennio Terra propôs a esta Casa que fosse feita, hoje, uma Sessão Solene que foi incorporada às festividades da Semana do Negro. O negro, assim como as mulheres, são maiorias discriminadas, são maiorias que, como aqueles que me antecederam, já colocaram. O Prefeito Alceu Collares foi muito feliz na sua exposição. Eu, realmente, não sou capaz de sentir aquilo que os negros sentem, mas sou capaz de sentir aquilo que as mulheres sentem e, nessa medida, sou capaz de aproximar esses sentimentos e saber que essas lutas precisam continuar. Não será hoje, nem amanhã, nem talvez enquanto nós estivermos vivos que seremos capazes de transformar este País em alguma coisa igual para todos, mas todos nós devemos fazer o nosso esforço. Às vezes os meus filhos me dizem: “Mas quando é que nós vamos ver estas modificações?” Não sei. Talvez quando os nossos bisnetos estiverem aqui. E se nós ficarmos pensando que nós não vamos ver os resultados daqui a dois meses ou daqui a cinco anos, ou até a nossa morte, nós realmente vamos ficar parados. E este não é o objetivo. O objetivo é que nos possamos mudar. E tudo aquilo que nós pudermos fazer em nosso espaço de vida vital devemos fazê-lo. A mensagem que a Câmara Municipal, na figura da sua Presidente em exercício, deixa os negros na comemoração do seu dia é de que realmente lutem pelo seu espaço, pela sua cultura, por aquilo que vocês, efetivamente, acreditam. Como já disseram os nossos oradores, as outras etnias sociais que compõem a população deste País preservam os seus valores culturais, inclusive a sua língua. E o negro perdeu a sua no tempo. Os alemães continuam ensinando alemão aos seus filhos; os italianos continuam ensinando italiano aos seus filhos; os judeus para os seus, e assim por diante. O povo negro perdeu sua língua, que é uma parte da composição da sua cultura. E estes valores têm que ser preservados. Não é racismo ao inverso, é a preservação da sua unidade como pensamento e como sentimento e como tal precisa, efetivamente, ser preservada. A nós só resta, agora, agradecer a presença de todos, em especial do Prefeito de Porto Alegre, Dr. Alceu Collares; Ver. Valdir Fraga, Secretário do Governo Municipal; Prof. Jorge Furtado, Diretor da Fundação Educacional Social e Comunitária; da Sra. Maria Helena Mathias da Rosa, da Sociedade Embaixadores do Ritmo e do Sr. Osvaldo Abenserrage, representante da Academia de Samba Praiana.

Nada mais havendo a tratar, agradecemos a presença dos Srs. convidados e convocamos os Srs. Vereadores para a Sessão Ordinária da próxima segunda-feira, à hora regimental.

Estão levantados os trabalhos.

 

(Levanta-se a Sessão às 16h05min.)

 

Sala das Sessões do Palácio Aloísio Filho, 20 de novembro de 1986.

 

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